Foi amplamente noticiado nos jornais que em 11 de janeiro entrou em vigor a lei que equiparou o crime de injúria racial ao crime de racismo, o que pode ser considerado um marco na luta contra a cultura herdada da escravização no Brasil.
Prefiro os termos “escravização” e “escravizado” porque denotam mais claramente o processo de subjugação, ou seja, a imposição da condição de escravo pela violência. Os africanos, tais como os indígenas, não eram escravos, mas foram escravizados.
Os primeiros africanos chegaram no Brasil em 1550 e durante 338 anos foram desembarcados quase 5 milhões de escravizados, segundo informa Luiz Felipe de Alencastro na obra “Dicionário da Escravidão e Liberdade” (Companhia das Letras, 2018). Somos o país americano que mais recebeu africanos.
Em Minas Gerais há fazendas que conservam as senzalas com seus utensílios de tortura, como a Fazenda Santa Clara. Há um vídeo no Youtube que mostra uma visitação na fazenda e evidencia os horrores a que foram submetidos os escravizados.
Estudante em Minas, lembro-me da história da Dona Maria do Carmo Gerônimo, que veio a falecer no ano 2000. Ela nasceu em 1871 e foi escravizada durante 17 anos, até a abolição pela Lei Áurea, de 13 de maio de 1888. É preciso ter consciência de que faz apenas 135 anos da abolição da escravização no Brasil e 23 anos da morte da última escravizada. Do ponto de vista da História, isso foi “ontem”, e talvez este seja um dos motivos pelos quais ainda podemos ouvir em todos os cantos deste país os ecos da escravização.
Eu posso ver o eco da segregação racial quando reparo que na sala de aula da minha filha, num colégio particular, dos 20 alunos apenas 1 é preto. Sei que muita gente é contra a política de cota racial nas universidades e concursos públicos, defendendo que deveria ser uma cota destinada a pobres. Mas não nos enganemos: se uma pessoa for pobre, razoavelmente inteligente e esforçada no Brasil, o grau de sucesso que poderá alcançar na vida também vai depender, em grande medida, da cor da sua pele.
Também posso ouvir o eco da escravidão nos estádios de futebol, nas portarias dos edifícios e até dentro da casa de amigos. Eu cansei de ouvir coisas como “isso é serviço de preto”; “meu médico me mandou caminhar. Acho que vou contratar um negrinho para ir no meu lugar”.
A escravidão persiste na cultura deste país como persistem aquelas brasas acessas debaixo das cinzas. Rescaldo é o nome disso. As políticas públicas de educação e de inclusão social, aliadas à legislação de combate à discriminação, fazem justamente o trabalho de apagar esse rescaldo, como os bombeiros jogando água mesmo depois de apagarem o incêndio.
Nancy Fraser, uma filósofa norte-americana, ensina que ao lado da injustiça social, que reclama por direitos como trabalho, moradia, educação e saúde, precisamos enfrentar a injustiça cultural, que reclama pelo direito ao reconhecimento. Para a injustiça social, o remédio está nas políticas públicas redistributivas, enquanto para a injustiça no campo do reconhecimento, o remédio passa pela reforma da própria cultura da sociedade, incluindo daqueles termos, palavras ou frases que estão na base da discriminação racial.
Eis, portanto, a fundamentação sociológica e filosófica da Lei 14.532, de 11 de janeiro de 2023, que retirou a injúria racial do Código Penal e o colocou na Lei Antirracismo (Lei 7.716/1989), endurecendo bastante as consequências penais do crime. Ela veio para fortalecer a legislação que visa extirpar o racismo da cultura de nosso país.
Agora, quem ofender a dignidade ou decoro de uma pessoa em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional, está sujeito à prisão em regime fechado por 2 a 5 anos, além de multa. A pena aumenta de metade se a ofensa for feita por duas ou mais pessoas em conjunto. Se a ofensa se der em locais como estádio, cinemas, igrejas ou outros locais destinados ao público, o ofensor ainda ficará proibido de frequentá-los por 3 anos. Mas, se a ofensa ocorrer em “clima de brincadeira”, por descontração, por diversão, como naquela piada feita no churrasco entre “amigos”, então, acredite, a pena de 2 a 5 anos será aumentada de 1/3 até metade!
Além disso, o crime não depende da “queixa” do ofendido, não está sujeito à fiança e não prescreve. Isso significa que aquela “brincadeira” racista que foi gravada pelo celular do amigo e depois foi parar nas redes sociais, se um dia “cair nas mãos” da polícia ou do Ministério Público, mesmo depois de muitos anos, vai levar o ofensor a responder pelo crime.
Trata-se de uma política criminal de “tolerância zero” com a prática das ofensas raciais, para que elas finalmente sejam eliminadas da cultura brasileira. Tal radicalismo não é novidade no Brasil. A citada Lei Antirracismo, que é de 1989, prevê a mesma pena de reclusão de 2 a 5 anos para quem, por exemplo, fabricar, comercializar, distribuir ou veicular a cruz suástica para fazer apologia ao nazismo.
Alteridade, uma das minhas palavras favoritas. Ela vem de alteritas (“outro”, em latim), e significa, essa única palavrinha, que todo ser humano só existe a partir do reconhecimento do outro como um ser igual, embora diferente. Ela quer dizer que você existe com seu jeito próprio de ser, agir e pensar, porque as pessoas interagem com você a todo tempo, te reconhecendo em dignidade. Quem assistiu ao filme “Avatar” vai lembrar da frase “eu vejo você”, do povo Na’vi. É a mesma coisa que dizer: eu te reconheço como igual.
Que os ecos da escravidão sejam definitivamente expurgados de nossa cultura e que ingressemos, finalmente, num tempo de verdadeira alteridade.
Um abraço e até a próxima!
*Davi Nogueira Lopes
Mestre em Direito pela UFMS (área de concentração Direitos Humanos)
Advogado da ADEP/MS.