Neyla Ferreira Mendes* 

Alguns consideram o dia 1º de abril de 1680 como o dia da abolição da escravidão indígena. Nesta data, o rei de Portugal publicou uma lei que acabava com o cativeiro dos indígenas, a lei proibia a escravização de novos índios, mas não libertava os cativos adquiridos antes de sua promulgação.

Os negros não foram os únicos escravizados na época da colonização, os indígenas também sofreram com a escravidão. O fim da possibilidade legal de escravizar os indígenas ocorreu em dois momentos, com uma lei de 06 de junho de 1755, válida apenas para o Estado Grão-Pará e Maranhão e em 1758, quando a lei foi estendida, através de alvará, para todo o país.

Para a coroa portuguesa parecia intuitivo explorar as riquezas da nova colônia, usando mão de obra escravizada indígena, inventou até um nome para legitimar isso: Guerra Justa.

Na chamada guerra justa eram escravizados os que entrassem em conflito com os colonos portugueses, o que de certa forma, legitimava a caçada para fins de cativeiro, naquela época a terra pouco valia sem a mão de obra e a única existente então era a mão de obra indígena. Várias comunidades foram dizimadas por conta dessa caçada para os fins de cativeiro, pois os indígenas resistiam à intenção de serem escravizados, mesmo perdendo a vida nessa recusa.

No início a mão de obra indígena foi usada na exploração do pau-brasil em áreas próximas ao litoral, cabia aos indígenas o corte e o embarque do pau-brasil nas caravelas portuguesas e, após, explorados para o cultivo e corte cana-de-açúcar. Os jesuítas se opunham a esse tipo de exploração e eram aliados na fuga para o interior do Brasil para fugirem do cativeiro, são relatados na história brasileira os massacres realizados pelos Bandeirantes nas reduções jesuíticas quando então, os padres eram mortos e os indígenas sobreviventes, escravizados.

Os jesuítas praticavam outro tipo de exploração, os objetivos eram catequizar e integrar os indígenas à colônia, atividade que rendeu aos Jesuítas, na época, influência política e poder econômico, possibilitando-lhe construir um amplo patrimônio posto que também exploravam o trabalho dos indígenas e se apropriavam do resultado. A mão de obra escravizada indígena só acabou com a vinda dos escravizados da África.

Muito embora escravizar indígenas tenha sido proibido, por lei antes de 1800, o relatório Figueiredo[1], documento produzido na década de 1960, em investigação oficial do Ministério do Interior, conduzida pelo procurador Jader de Figueiredo Correia, registrou crimes praticados em todo o país contra a pessoa e o patrimônio indígena, como por exemplo, torturas, extermínio de aldeias inteiras, prostituição de índias, apropriação dos frutos do trabalho, alienação do patrimônio, cárcere privado e trabalho escravo em todas as regiões, provando que essa situação foi generalizada em todo território nacional, até pelo menos, o fim da década de 1960, posto que o relatório foi apresentado em 1967, quando o então Serviço de Proteção Indígena (SPI) foi extinto e criada a atual Fundação Nacional do Índio (FUNAI).

Jader Figueiredo declarou em suas conclusões que “o índio, razão de ser do SPI, tornou-se vítima de verdadeiros celerados, que lhe impuseram um regime de escravidão e lhe negaram um mínimo de condições de vida compatível com a dignidade da pessoa humana”.

Os indígenas, por suas condições de vulnerabilidade social e econômica, continuam presas indefesas da escravidão moderna como pode se verificar em uma notícia da Revista Época, no caso, trabalho escravo para o narcotraficantes, cujo escravizado foi atraído por um emprego para plantar eucalipto.[1] Ou em 2020, quando vinte e quatro indígenas do povo Guarani Kaiowá foram resgatados de trabalho análogo ao escravo, em Itaquiraí, na colheita de mandioca.[2] Ou ainda, em reportagem do Domingo Espetacular do mês passado, mostrando que crianças indígenas de até dez anos estão sendo escravizadas em lavouras da maconha, culturas essas que, apesar de localizada no lado paraguaio, pertencem a brasileiros do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.[3]

A invisilidade do sofrimento imposto aos povos indígenas pode também ser compreendida pela formatação dada aos seus direitos civis, vez que só a partir de 1988, por força do artigo 232 da Constituição Federal, deixam de ser tutelados e passaram a ter direito de voz e terem capacidade jurídica para estarem em juízo e se defenderem por suas próprias contas, até então, dependiam dos próprios funcionários públicos que violavam seus direitos e sedimentavam os ferrolhos do cativeiro da miséria à qual estão hoje submetidos, para serem defendidos, em juízo ou fora dele.

 

*Defensora Pública de Segunda Instância. Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Pós-graduada em Direito Processual Civil pela Universidade Católica Dom Bosco. Mestre em Direito Civil pela Faculdade Autônoma de Direito – FADISP.

Membro da Academia de Feminina de Letras e Artes do Estado de Mato Grosso do Sul – AFLAMS , Coordenadora Estadual do Núcleo de Defesa dos Povos Indígenas e Igualdade Racial e Étnica da Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso do Sul no período de 18 de abril de 2018 a 20 de março de 2022.

 

[1] https://www.defesanet.com.br/fronteiras/noticia/26284/Colonizados-pelo-trafico/

[2] https://cimi.org.br/2020/07/em-meio-a-pandemia-indigenas-resgatados-trabalho-escravo-ms/

[3] https://www.youtube.com/watch?v=WtaFDUKy8z8