Eu nunca havia cogitado ser Defensora Pública. Conhecia muito pouco da profissão, e sabia que tinha fama de não ser valorizada. Contudo, surgiu o concurso, e por estímulo do meu sócio, pedi dinheiro emprestado para a minha mãe e fiz a inscrição. Nessa época, da inscrição, eu advogava em Aquidauana-MS, onde permaneci durante algum tempo. Era 2004, em novembro desse ano assumi o cargo de Assessora de Desembargador e vim trabalhar no Tribunal de Justiça em Campo Grande-MS. Quando da realização da 2ª fase do concurso, bem como da prova oral e de tribuna, era aqui que eu estava.

Tomei posse em 22.08.2005, junto com valorosos 11 (onze) colegas. Minha primeira comarca, ainda como substituta, foi Aquidauana, onde permaneci por cerca de 2 (dois) meses. Depois assumi como titular na Defensoria Pública Estadual de Itaporã, onde permaneci até 2009. Nesse ano fui removida para Dois Irmãos do Buriti, e no ano seguinte para Anastácio. Em 2011 fui promovida para Miranda, e desde janeiro de 2014 assumi a 3ª Defensoria Pública Estadual de Defesa do Homem, em Campo Grande.

Retornar para Campo Grande, onde fiz faculdade e tenho muitos amigos era um objetivo antigo. Poder estar aqui é muito bom em vários sentidos, pois aqui temos boas escolas para as crianças, temos acesso a um atendimento médico de excelência, além de muitos serviços que não estão disponíveis no interior. Mas confesso que tenho saudades da vida simples e tranquila das cidades pequenas, especialmente tenho saudades dos tempos em que vivi em Miranda, onde fiz muitos amigos e para onde volto sempre que posso.

A defensoria nos traz desafios diários. Estou há quase oito anos defendendo acusados de violência doméstica, e quando aqui cheguei não tinha muita noção de como seria. Muitos preconceitos foram quebrados, muito da luta feminina foi aprendida e compreendida. Eu já me considerava feminista antes de vir para cá, mas não tinha a exata noção do quanto essa luta é árdua e precisa ser constante, pois desconstruir uma cultura de submissão feminina não é nada fácil.

Mas erra quem pensa que uma feminista não pode defender um réu de violência doméstica. Primeiro, todos devemos ser feministas, pois principalmente nós, defensores e defensoras públicas, não podemos concordar com uma cultura de subjugação, em que direitos humanos são violados, em que não se considera as pessoas como iguais. Segundo, todo réu tem direito a um julgamento justo, segundo o devido processo legal, sendo-lhe assegurada a ampla defesa e o contraditório. Garantir que esses princípios constitucionais sejam observados é o papel que desempenho diariamente, e tento fazer isso com respeito tanto àquele que está sendo acusado, quanto àquela que o está acusando.

Costumo dizer que era uma pessoa antes de entrar na Defensoria Pública, e hoje sou outra bastante diferente em sua maneira de enxergar o mundo e as pessoas. Antes, como toda pessoa que vive na bolha da classe média, com acesso a boa escola e serviços que o dinheiro pode pagar, não tinha a exata noção do que era a pobreza no nosso país. Eu achava, por exemplo, que as estatísticas que mostravam que mais de 10% da população era analfabeta era falsa, pois pensava que não era possível em um país com oferecimento de educação pública e gratuita para todos. Mal sabia que de fato não é para todos.

Outra pauta que passou a fazer um sentido completamente diferente para mim foi a indígena. Cresci em um município onde uma das principais atividades econômicas é a pecuária, em Cáceres-MT, e me acostumei a ouvir desde sempre que índio era preguiçoso, que só queria “sugar” os verdadeiros trabalhadores e tomar as terras daqueles que trabalhavam para gerar empregos e alimentar o país. Quando entrei na Defensoria Pública todo esse preconceito caiu aos poucos, pude enxergar toda a grandeza da cultura e dos valores dos verdadeiros donos da nossa terra, e comecei a encarar a realidade de que os indígenas foram e continuam sendo vítimas de uma política de discriminação e até genocídio.

Na Defensoria Pública eu aprendi o verdadeiro sentido da palavra empatia. Percebi que a igualdade prometida pela constituição está muito longe de ser atendida, e que a desigualdade é a regra. Vi que os direitos humanos das pessoas que fazem parte da classe social mais baixa, o nosso público, não são tratados da mesma forma que os das outras pessoas. Entendi que a discriminação racial vai muito além do que eu sequer imaginava, e que é responsável, inclusive, pelo encarceramento e assassinato de jovens negros neste país. Hoje sou uma pessoa muito melhor.

Orgulho em ser Defensora

Fazer parte da Defensoria Pública é um orgulho para mim, pois é o órgão que atende mais de perto o cidadão carente, o vulnerável, o discriminado. Ser a voz dessas pessoas é uma missão difícil, mas muito recompensadora, na medida em que podemos, aos poucos, e ainda que em casos individuais, mudar algo para alguém. Conseguir alcançar um direito para uma pessoa que não tinha acesso a ele é uma dádiva. Enxergar a gratidão nos olhos daqueles que nos procuram é uma benção.

A pauta de direitos humanos, nas suas mais diversas particularidades, é o que me encanta e me motiva a continuar lutando pelos nossos assistidos. Aprendi na Defensoria Pública a nunca perder minha capacidade de indignação com as injustiças, e seguir lutando para que elas não ocorram é minha vocação.

Lembrança

Vou falar do primeiro júri que fiz. Foi, se não estou enganada, no final de 2006. A acusada era uma mulher que havia dado cinco tiros no marido. Ela era vítima de violência doméstica há muito tempo. Seus filhos foram ao plenário contar tudo o que ela sofreu durante toda a vida. Durante seu interrogatório, em plenário, ela chorou, contando tudo o que já tinha vivido nas mãos do companheiro. O júri durou mais 16 horas, e acabou depois da meia-noite. Ela não negava o crime, e a defesa sustentou que era caso de tentativa de homicídio privilegiado, pois ela teria reagido a injusta provocação da vítima, e munida de forte emoção, havia dado os tiros. Ao final, o Conselho de Sentença acolheu nossa tese, e ela recebeu uma pena de pouco mais de dois anos, para ser cumprida em regime aberto. Ela chorou, me abraçou, me agradeceu. Naquela madrugada dei carona para ela e os seus filhos, e apesar do cansaço e desgaste emocional de ter feito meu primeiro júri, que foi difícil e bastante demorado, eu me senti realmente emocionada por ter conseguido convencer aqueles sete cidadãos de que a Sandra, minha assistida, não merecia ir para a cadeia.

Características fortes

Eu me considero uma pessoa organizada, esforçada, e um tanto preocupada com prazos e horários. Isso me ajuda a manter o serviço em dia e o fluxo de trabalho do SAJ sem muitos processos na cor vermelha, apesar do imenso volume que temos na violência doméstica. Já fui mais estudiosa, mas confesso que hoje estou um pouco desanimada para estudar. Contudo, ainda pretendo fazer uma pós-graduação em direitos humanos. Não sou muito paciente, por outro lado, e como gosto das coisas corretas, às vezes me estresso com facilidade, principalmente quando vejo pessoas agindo com desrespeito às outras. Na vida pessoal posso dizer que há duas coisas que amo fazer: viajar e mergulhar. Então sou uma mergulhadora viajante, ou uma viajante mergulhadora.

Ataques políticos

Tenho plena consciência de que para o futuro tudo pode piorar. Podemos perder alguns direitos, ter nossa sagrada aposentadoria postergada etc. Mas vejo tudo isso como parte do processo de luta contra as injustiças. Não vou desistir de ser Defensora Pública se perder as férias de 60 dias, nem se eu tiver que me aposentar só com 80 anos. A nós, como agentes de transformação social, cabe influenciarmos para que essa mentalidade de ataque ao funcionalismo público, e especialmente à Defensoria Pública, seja revertida e se transforme em reconhecimento e investimento na melhoria da prestação dos nossos serviços.

Tempo de Associada

Me associei à ADEP logo que tomei posse, em 22/08/2005, e durante todos esses anos me desfiliei uma única vez, por pouco tempo. Hoje credito essa desfiliação à minha imaturidade, pois se as condições que me levaram a pedir a desfiliação voltassem a se repetir hoje, eu não o faria.

A ADEP se esforça, mas conheço as dificuldades por que passa, principalmente diante do grande número de desfiliados, o que causa um grande problema financeiro à entidade. Contudo, sei que na medida do possível, tem feito o que é necessário para nos representar.

Complemento

Quando completei 13 anos na Instituição, no ano de 2018, eu escrevi algumas palavras, as quais definem muito como a Defensoria Pública influenciou para que eu hoje fosse uma pessoa melhor, mais empática, mais consciente. E vou deixar aqui para finalizar, registrando que fiz algumas poucas alterações para retirar alguns conteúdos políticos que poderiam ser inadequados.

“Preciso deixar aqui meu testemunho: antes de ser Defensora Pública não tinha a menor ideia dos dilemas da população mais vulnerável deste país. Eu achava que o IBGE estava errado ao apontar tantos milhões de analfabetos; mas ele estava certo. Eu achava que pobre só passava fome se quisesse; eu estava errada. Vi e tenho visto as mazelas do povo ao longo de 13 anos. Aprendi a respeitar as diferenças e os diferentes. Enxerguei que eu era muito pequena perto da grandeza dessas pessoas que acordavam todos os dias sem saber se teriam dinheiro pra comprar carne pro almoço. Pessoas que precisam do Estado, porque senão nem conseguem ir trabalhar, pois não tem onde deixar os filhos. Percebi ao longo desses anos que falar de meritocracia é a maior hipocrisia que um brasileiro pode bradar. Percebi que apesar de a CF/88 dizer que somos todos iguais perante a lei, essa igualdade está muito longe de ser alcançada. Festejei o dia em que se passou a admitir a união de homossexuais, que há muito eram discriminados. Mas assisti a onda de discriminação e preconceito que insistiram em os rodear. Vi, com meus próprios olhos (e nariz) o horror das prisões brasileiras. Vivi angústias por não conseguir ajudar a pessoa que precisava de uma internação. Percebi que a dívida do Brasil com os indígenas é impagável, e que eu nunca havia compreendido sua rica cultura. E hoje me sinto horrorizada com a normalização do desprezo das minorias, da comparação de negros com gado, da crença de que ser gay é falta de surra e de que índios são inferiores. Tenho asco de discurso de ódio! Aprendi como defensora que amor e empatia fazem toda a diferença. Alguns dias de convivência com a camada mais vulnerável da nossa população podiam fazer a diferença na vida das pessoas que bradam essas violências e discriminações. Mas não vejo que assim pretendam fazer. Só me resta orar para que esse pensamento racista, homofóbico, machista, xenofóbico, não prevaleça. Só me resta tentar manter a serenidade (acho que já a perdi), para poder esperar que o futuro seja melhor, mais inclusivo, mais generoso, mais empático, mais respeitador dos direitos humanos. Só me resta continuar lutando, como defensora pública, mulher, mãe, cidadã”.